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E depois do AVC... a vida continua

Luís Abreu - sobrevivente

Chamo-me Luís, nasci em 1973 e até 2006 tive o que se pode chamar de “vida normal”. Bem, na realidade, não foi muito normal, mas já lá vamos. Primeiro quero contar o que me aconteceu em 2006. Em agosto de 2006. Segundo dizem. Tal como de muito do que aconteceu desde então não tenho qualquer recordação desse dia. Só me lembro do que me contam e isso não são memórias. Ao contrário das memórias, nada me obriga a acreditar nestas histórias. Mesmo das recordações há que desconfiar. Posso ser maluco e fabricá-las todas (que ninguém me oiça a dizer isto).

Voltando um pouco atrás, até 2006, tive um AVC grave e fiquei tetraplégico. Alguns consideram um milagre eu ter sobrevivido. Eu considero apenas sorte. “Apenas”.

Tudo começou de madrugada. Acordei indisposto e com uma forte dormência do lado direito. Sintomas que desconhecia e cuja celeridade com que passaram ajudaram a ignorar. Nem acordei a Ana. De manhã, como era relativamente usual eu ir trabalhar um pouco mais tarde, nem eu nem ela demos qualquer importância ao facto de eu dizer que o faria.

Dessa hora até a Ana vir almoçar sabe-se apenas que telefonei ao INEM, que ainda disse o nome da rua, mas que já não disse o número da porta. Resultado: seis horas apagado e sem qualquer assistência. Os médicos dizem que, no meu caso, não, mas eu estou convencido que todo esse tempo agravou as sequelas da sulipampa. Quando a Ana chegou eu estava caído no chão, desmaiado e a sangrar (bati com a cabeça ao cair). Deve ter sido uma experiência horrível para ela. A Ana diz que ainda hoje sente o cheiro a sangue. Ainda segundo ela, os breves segundos que decorreram entre o abrir da porta, chegar até mim, abraçar-me e ver que eu estava vivo, pareceram-lhe uma eternidade vivida muito lentamente. Foi ela que, sem nunca me largar, telefonou ao INEM para me ajudarem.

Ao chegar, a equipa da emergência médica, mandou a Ana para outra divisão para ela “não atrapalhar”. Eu acho que foi para não me ver morrer. Fizeram um bom trabalho e, como é óbvio, mantiveram-me vivo. Duvido que se tivesse morrido estivesse a escrever este texto.

Dei entrada no hospital já em coma e quase morto. As primeiras horas foram absolutamente sufocantes para quem me acompanhou. As pessoas que mais me amavam não sabiam sequer se eu estava vivo. Quando finalmente deram informações minhas, mais valia terem ficado calados:

- O indivíduo não deve sobreviver a esta noite.

Indivíduo? Não basta dizerem que vou morrer ainda me chamam indivíduo? Quase vomitei quando soube isto. Eu sei que a prioridade ali é salvar vidas, mas é assim tão complicado juntar a isso um bocadinho de sensibilidade? Será que nas faculdades ensinam que a estupidez é a melhor defesa e que os mais sensíveis chumbam? Para além de se ter enganado.

Depois desta pérola perguntou quem me queria ver. A Ana antecipou-se a todas as pessoas e disse logo que ia ela. Apesar de todos os avisos do médico, ela contou-me que, naquele momento, ver-me foi um misto de alegria e choque. Por um lado, eu estava vivo, por outro, nem em séries tinha visto alguém com tantos fios e tubos. Depois daquela primeira noite, passei lá mais cento e quinze noites, cerca de cem em coma.

Mentiria se dissesse que a alta facilitou tudo. Apesar de ambicionada, a verdade é que deixei de ser tratado por pessoas que estudaram para cuidar de criaturas na minha condição, para ser tratado por pessoas que me amavam, mas cuja experiência mais próxima era tratar de bebés. Isso não foi, no entanto, nem de perto, a pior coisa. O pior era lidar com a ansiedade que eu próprio provocava ao querer corresponder a expetativas que não existiam.

Passados estes dez anos, ainda não se sabe ao certo o que me provocou o AVC. Os médicos desconfiam de um qualquer problema congénito. Eu e a Ana apostamos mais no stress. Certo é que se voltasse atrás relaxava mais – e fazia mais exames clínicos que, confesso, eram totalmente desprezados.

Admito, no entanto, que houve aspetos positivos no AVC: publiquei quatro livros, algumas pessoas desapareceram e vieram outras. Acima de tudo, intensificou o papel que o amor tem na minha vida: amo mais e sou mais amado. Com o AVC surgiu também a hipótese de voltar a estudar na mesma área que estudei e em que trabalhava. Estou, neste momento, a tirar um curso de programação para telemóveis.

Estudar é algo que valorizo muito e que se não fosse a sulipampa duvido que a vida me deixasse fazer novamente. E como é que um tetraplégico estuda? Oiço. Online. O curso é totalmente online. Acredito que há sempre uma forma de ultrapassar as limitações.

Felizmente (e isso é tremendamente importante, tanto quanto a vontade de voltar a andar, tanto quanto foi voltar a falar), a minha luta é travada ao lado de pessoas que me ensinaram que a vida não acabou: modificou-se. Não é fácil, mas é possível.

Para terminar: a ciência deve estar perto e eu quero estar pronto, mas não pensem que este texto, embora fazendo parte da preparação, não implicou algumas lágrimas, mas são elas que dão sal à vida.

O que acha disto?